2008/04/20

A minha teimosia finalmente revela-se proveitosa

Nunca consegui ler um livro inteiro do António Lobo Antunes. Os fãs que me desculpem, mas de facto foi sempre tarefa árdua a que me dispus uma porção de vezes e que nunca concluí. Pois de há umas duas semanas para cá tenho andado entusiasmadíssima com um que me custou 5 euros na feira do livro de Mil Fontes em 2004. Feita teimosa peguei nele, e decidi: é desta! E para meu espanto, está mesmo a ser. Um excerto despertou-me a atenção, resolvi copiá-lo para aqui. Há uns posts antigos em que falo nestas situações, e para além disso apeteceu-me. Parece-me tão real e tão comum... tão tristemente comum... aqui fica.
NOTA: Ah respeitei a formatação original... deixa lá ver se o blogger.com também respeita!
- No Nilo?, sei lá se ainda existe o Nilo
onde tomávamos o pequeno almoço ao domingo, defronte da igreja, sonâmbulos e ácidos, culpando o outro da ausência de entusiasmo, da ausência de surpresa, entre casais que se aborreciam também e beatas regressadas da missa, e durante a tarde o jornal, Gardel, cinema de vez em quando, silêncios longuíssimos eriçados de recriminações, o céu muito azul no postigo do tecto, uma tranquilidade amarga, se ele se apaixonasse por alguém, se ela se apaixonasse por alguém, o pavor das férias, um mês inteiro sem trabalho a tropeçar um no outro, tudo demasiado previsível, tudo aborrecido, tudo sem graça, afinal a vida é isto?, afinal a vida é só isto?, os gestos que nos irritavam, os tiques que nos enervavam, a maneira de tossir que nos punha os cabelos em pé, as pequenas manias ganhando uma importância tremenda, o modo de entrar em casa, de apertar o tubo da pasta de dentes, de comer, e ao mesmo tempo o pânico de ficar sozinho, o desejo e o medo de recomeçar, o terror de cortar com minúsculos hábitos, minúsculos confortos, alegrias microscópicas, o corpo procurado no escuro e, logo a seguir, dormir, a certeza que se estava a envelhecer e daqui a nada era tarde, a indagação inquieta, sem resposta, Onde é que eu me tramei e em que altura e quando?, como será a tua reacção se eu confessar Estou farto?, se eu confessar Não posso mais, não sou feliz, não me sinto bem aqui?, choros?, lágrimas?, cenas?, objectos partidos?, insultos?, gritos?, um breve espaço de paz e mais gritos depois?, acusações?, ameaças?, olhares assassinos?, gargalhadinhas teatrais?, e assim eu com os namorados, e assim eu com o Ricardo, o defeito será meu, será deles, será de ambos?, esta ausência de entusiasmo, de vibração, de esperança?, este enfado, esta impaciência, este mal estar quando ela fala?, esta forma de rir que me dá raiva de a matar?, conter a gana de explicar Não aguento, a culpa não é tua, perdoa, é minha, não aguento, não aguento a maçada de voltar para casa, não aguento esta bola no estômago, não aguento encarar-te, julgava que era capaz, não sou capaz, não consigo, e um dó, misturado com alívio, apesar da fúria, apesar da cara descomposta, apesar das espáduas que tremiam
- Tu juraste, tu prometeste, tu quiseste, não te obriguei a nada, pois não?, não te apontei uma pistola, admite que não te obriguei a nada
e agora o que é que eu faço com a minha roupa, com os meus livros, como tiro isto tudo de uma vez para evitar mais berros, mais soluços, mais palavrões, como é que eu faço com a conta o banco, como é que eu faço com o que nos pertence a meias?, pensar todos os dias Digo-lhe amanhã a retrair-se, permanecer calado, não arranjar coragem, amanhã sem falta, chegando do emprego, digo-lhe e em lugar disso acomodar-se defronte da televisão, desesperado comigo, se ao menos ela percebesse através do meu silêncio, se ao menos ela tomasse a iniciativa, se ao menos ela tivesse a força de romper, mas abismava-se num livro, mas levantava-se com um suspiro
- Até amanhã
e eu encolhido, quietinho, numa ponta da cama, para que não me tocasse, se um joelho me roçava afastava-me mais, será que não entende, que não se dá conta, não percebe nada?, se pressentia que ia abrir a boca, imaginava, esperançado, É agora, e ela, completamente a leste a provocar-me pele de galinha só porque cruzava a perna
- Calcula o que me aconteceu no emprego esta tarde
e eu, calado, Quero lá saber o que te aconteceu no atelier, quero lá saber os problemas que tens, ela a aclarar a voz e eu a pensar
- O teu pigarro mata-me, devia abrir-se um buraco no chão e desapareceres por ele abaixo, que bom
e ela surda
- Vão ter de pôr um terço do pessoal na rua, anda uma crise dos diabos por aí
sem dar fé que me era indiferente a crise, que me eram indiferentes as suas desgraças, os seus motivos, os seus planos, que lhe suplicava Carrega tu com o odioso da questão, vá lá, atreve-te por favor soluciona-nos isto, propõe-me que nos separemos, e ela sem entusiasmo, ela porque era segunda-feira, porque era costume, porque era obrigação, ela, exactamente como eu
- Vamos jantar ao Escondidinho?
e o restaurante deserto, os copos ao contrário os pratos ao contrário, o frigorífico de porta de vidro com papaias nas prateleirinhas de grades, a comida demorava séculos e nós fumávamos sem nada que dizer, respondendo com sorrisos forçados às amabilidades do gerente, ao seu fluxo de palavras, à sua simpatia impositiva, a pensar Quando é que vou dormir?, quando é que é amanhã?, minutos cancerosos, lentíssimos, (…)
e vivíamos em função de quê?, para quê?, esperando o quê? Dias que se sucediam a dias idênticos, sem mais sobressaltos do que esta insatisfação, este azedume, o sonho que te apaixonasses por um homem, não importa qual, fosse quem fosse, e regressas a casa confusa. Vou procurar um apartamento fora de Lisboa, preciso de estar sozinha (…)
António Lobo Antunes
in: A Morte de Carlos Gardel
Adenda: o blogger não respeita a formatação do dr. Antunes...

8 comentários:

  1. "e nisto vi a mulher da moradia ao lado, uma vivendinha com saguão e um pátio de cimento, encostar, cantarolando, uma escada à parede, trepar os degraus, alcançar o telhado, e no instante em que o meu pai surgiu na cancela, agarrado à muleta, com a calça da perna que não tinha dobrada para cima e presa à virilha com uma mola de roupa, a mulher, muito alegre, inclinou-se para a frente, abriu os braços, e sem uma palavra despenhou-se no pátio..."

    A L Antunes, escritor maior. Aconselho começar pelo princípio: "Memória de elefante". Depois é um nunca mais parar.

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  2. A teimosia é um óptimo defeito. :-)

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  3. olá! Eu tb tenho um livro do Lobo Antunes, mas ainda não o li. Quando o tentei ler, fiquei baralhado porque aquilo não tem pontuação. Depois, toda a gente me dizia que o Lobo Antunes não prima pela pontuação nos livros que escreve. beijos e as melhoras!

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  4. j.espinho: esse não foi dos que tentei, portanto ainda não está "marcado", pelo excerto, agrada-me. muito.

    sinhã: diz que sim, diz que sim. agora é ampliá-la (a teimosia) aos outros campos da vida, pode ser que resulte! ;)

    n. rogério: neste caso, A Morte de Gardel, a pontuação tb não abunda, mas parece-me que é uma questão de entrar no universo e na linguagem, e depois a coisa vai. Teimosia, portanto! :)

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  5. Eu só leio algumas... Gosto das crónicas dele, já os romances dizem-me que são um bocado pesados. Mas das crónicas, decididamente gosto.

    Não sei se já leste alguma, mas a revista Visão costuma trazer, quinzenalmente, o senhor Lobo Antunes numa das páginas. Se fores ao site, encontras algumas no espacinho dele (algumas é como quem diz que até são bastantes).

    :)

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  6. anaa_ antes de me aventurar neste li o 2º Livro de Crónicas e gostei imenso, acho que foi isso que me deu balanço para este.

    n. rogério- o título é a Morte de Carlos Gardel e não Morte de Gardel... mania de abreviar tudo...

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  7. O excerto é do livro que estás a ler.
    Se queres entrar no mundo de Lobo Antunes, tens aqui uma boa ferramenta:
    http://www.ala.nletras.com/

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  8. Anónimo8/2/10 17:40

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